Espanhola

- Por que essa faca é diferente?!

- É uma faca para caçar. Vê essa curva suave que ela faz? É pra machucar mais quando a gente fere um animal... Ou alguém.

- Nossa! Que crueldade!

- O mundo lá fora é perigoso, moleque. Aqui você sempre vê animais, mas está tudo sempre sob controle. O mundo lá fora não é um circo.

- E essa? Outra faca de caça?

- De certo modo... É um modelo espanhol. Veja como é bem melhor acabada que a outra.

- E essa fininha? Parece um candelabro...

- Ah, essa não é faca. Não corta, é só pra furar. É uma adaga. Essa aqui é alemã.

- Em todo o mundo se fabrica arma?

- Lutar é algo necessário para o ser humano, assim como é para os animais.

- Mas isso é tão cruel, tão...

- Você é muito pequeno pra entender.

- As pessoas não podem ser tão cruéis no mundo todo...

- Mas são, e costumam ser ainda mais.

Com seu cabelo e barba loiros, aquele forte guerreiro de ar tão nobre e digno de admiração se ergue e afasta aos poucos. As manchas do circo vão ao seu encontro - e conversam, dando-lhe a atenção que parece lhe fazer tanto bem.

Maomé entende bem como é isso. Não importa que só tenha sete anos, seu talento sempre foi elogiado como o palhaço Remédio. E ele sabe como elogios são bons.

Maomé não liga pra ser chamado de moleque, nem por ter sido deixado pelo Xisto porque este queria ainda mais atenção. A única coisa que realmente importa é sua mãe.

- Maomé, querido. - Sua mãe o envolve nos braços num abraço quente e carinhoso. É como se estivesse protegido de todos os perigos do mundo. Beija-lhe a cabeça e continua abraçando...

- Mãe, por que o Cajú faz isso?

- Isso o quê, filho?

- Toda vez esquece a fala dele!

- Ah, filho, ele é assim mesmo! Não é tão inteligente quanto você.

- Mas ele já é grande! Tem quinze anos! Devia ser menos burro!

- Liga pra ele não, filhão. As pessoas são diferentes mesmo. Se preocupe com seu papel como vem se preocupando. Toda vez elogiam você e você sabe disso!

Maomé se afasta pra olhar nos olhos da mãe.

- Se ele nunca errasse, talvez eu não fosse mais famoso que ele, né mãe? Se ele se esforçasse tanto quanto eu.

- É, filhão, talvez. - Ela o abraça novamente e Maomé suspira, confortado.

- Mas eu queria que o número da gente ficasse perfeito...

Novamente Maomé se vê sentado, sozinho, ao frio da noite. Cenas assim tão freqüentes no passado nunca mais se repetiram. Já há quase um mês sua mãe o trocou por esse Xisto...

No início deu raiva, mas depois... Maomé admira Xisto, de certo modo. Uma parte de Maomé quer ser Xisto quando crescer.

Mas sua mãe não ligava mais para ele desde que o Xisto apareceu. Maomé já tentou fazer cena, chorar, espernear, mas não houve jeito. Sua mãe parecia outra pessoa e nenhum truque que ele já conhecia voltou a funcionar. A aliança...

A passos suaves, Maomé caminha pelo quarto de sua mãe. Na cabeça, dezenas de histórias de fadas e magia, e a certeza de que aquela aliança no dedo de sua mãe traz algum tipo de encantamento.

- Maomé, o que está fazendo? - Quando seus dedos tocaram o anel, sua mãe acordou furiosa. - Essa não foi a educação que te dei! Vai ficar de castigo!

Hoje, à luz da Lua, a idéia de que o presente de Xisto que enfeita os dedos da sua mãe faz mais do que enfeitar ainda persiste.

Tanta coisa Maomé já viu com a imaginação... A cena mais recente era Xisto sendo morto por suas mãos.

Mas Maomé não seria capaz de fazer isso, seria? Também não dá pra ver sua mãe aos pés desse homem, que nem parece gostar assim dela, simplesmente aproveita.

Desde a chegada de Xisto, Maomé perdeu o trono. O amor da sua mãe, parte da atenção dos seus amigos e dos amigos de sua mãe. Tudo agora gira em torno de Xisto e não é assim que as coisas devem ser.

Maomé se levanta decidido. Seria capaz de fazer isso? Nem Maomé sabe, mas está disposto a descobrir.

A faca espanhola está na sua mão. Xisto deixou sua coleção espalhada pela mesa. Passos lentos seguem entre as sombras com insegurança e inquietude disfarçadas de frieza.

À porta do quarto, Maomé vê aquele homem deitado sobre sua mãe. Entre dúvidas e pensamentos, seus olhos inseguros encontram os de Xisto.

Nos olhos de Xisto, Maomé vê raiva e um brilho estranho. O brilho da morte. E corre. Deixa o lar e corre. Deixa o acampamento. Corre e corre como em tantas cenas lá no circo. Mas dessa vez não tem graça. Corre tentando se desvencilhar dos olhos de Xisto.

Maomé corria sem saber pra onde. Corria sem saber até quando. Sem saber que aqueles olhos nunca mais o deixariam em paz. Como quem foge de si mesmo. E atravessou montanhas e desertos, mundos estranhos, de vivos, de mortos. Maomé e sua companheira espanhola, que de tanto o guiar terminou que adentraram a Espanha.

Os anos vieram e, como quem não quer nada, logo transforamaram aquele menino num homem, a despeito das dificuldades que nunca deixaram de atravessar o seu caminho.

- Me dá uma dose!

- Você está péssimo hoje, Maomé!

- Você também estaria se tivesse sido chutado por sua mulher como fui pela Clara.

- A Clara... Te falei que era problemática.

- Dá pra trazer o goró logo? Ou aqui deixou de ser bar e virou igreja e eu estou num confessionário?

- Aqui está. ...Mas você não sabe nada dela. Ela está na cidade há menos de um ano.

- E daí?!

- Ninguém sabe nem se ela tem família.

- Claro que tem.

- E quem são?

- Não sei. De outra terra. A mãe dela morreu quando ela nasceu, mas tem o pai.

- Ela é bem mais nova que você, uns dez anos suponho...

- Não exagere!

- Estou errado?

- Claro que está! Ela é só oito anos mais nova!

- Grande diferença...

- Claro que faz diferença! E nem importa. Nunca encontrei uma mulher assim e isso é o que vale.

- Além do mais, dizem que...

- O quê!?

- Melhor não, deixa...

- Vocë agora vai dizer!

- E essa faca!? Maomé, o que...

- Diga, Jonas...

- Está bem... Dizem que ela... Só está com você por causa do seu emprego no porto.

- É, dizem é?!

- É...

Maomé se senta triste e toma sua bebida.

- É, talvez seja isso mesmo... Jonas, me traga outra dose. Aliás, traz a garrafa. E se não quiser andar muito esta noite, economize passos trazendo logo mais de uma.

- Homem, não vale a pena tanto por uma mulher. Outras virão...

- Não, Jonas! Outras já vieram! Ela é única! Inteligente, a melhor que já vi na cama. Tínhamos tantos planos...

- Mas que diabo! Que foi que houve afinal? Já que não vai me deixar atender os outros frequeses enquanto não me contar o que aconteceu, vê se desembucha logo!

Maomé lhe estende um papel amassado.

- "Mezito"?

- É como ela me chamava.

- "Mezito, preciso viajar para resolver assuntos urgentes de família. Talvez nunca mais te veja novamente. Foi muito bom te conhecer. Espero poder voltar em breve. Você está no meu coração. Clara."

- Viu? Me dá aqui. - E guarda o bilhete no bolso.

- Meu amigo, só tenho uma coisa a te dizer.

- O quê?

- Você é muito engraçado. Esse drama todo por conta desse bilhete? Ela está viajando.

- Duvido muito! Ela só estava buscando uma forma de dar a notícia que não me quer mais.

- Que dramático...

- Pensa diferente?

- Claro!

- Você é muito ingênuo para os ardis femininos.

- Tá, grande profeta, já pensou em visitar a Clara?

- E ser rejeitado em pessoa? Não, obrigado.

- Prefere viver na incerteza?

- Que incerteza?

- Ela gosta de você.

- Tá, e se ela me rejeitar?

- Aí você olha bem fundo nos olhos dela e diz: "Não queria mesmo, minha filha. Aí fora está cheio de mulheres doidas por mim."

- Ei, gostei disso! "Minha filha, eu não queria você"... Legal, já pensou em ser escritor?

- Tá, tá, vai logo antes que a coragem acabe!

- Certo, só mais um gole. Não tomei nem meia garrafa!

A porta destrancada leva à vila, moradia de pessoas simples, mas com um ar um tanto paternal.

Maomé se aproxima da porta de Clara, quando esta se abre e de lá sai um homem corpulento, olhando para dentro e se despedindo com "querida".

A faca salta para a mão de Maomé, que em fúria lhe dá um destino certo.

Tudo acontece muito rápido. Os olhos que Maomé vê dentro da sala, no espelho, por um instante trazem o mesmo olhar de fúria que um dia o fez fugir. O que mais lhe assusta é que os olhos eram seus mesmos.

Um grito de horror da Clara traz Maomé de volta à realidade e ele tira devagar a faca do abdomen daquele homem de rosto tão familiar.

"Eu conheço essa faca, moleque" são as últimas palavras daquele homem à porta de Clara, que entre soluços e lágrimas incontroláveis, trêmula lhe diz: "Você matou meu pai".

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